O Instituto de Estudos Libertários (IEL) entrevistou Kátia Motta, ex-dirigente do Sindscope e professora do Colégio Pedro II. A foto é de Vinícius Machado (in memoriam). A entrevista, que vai abaixo na íntegra, pode ser lida originalmente no site do IEL (clique aqui).
1) Quem é Katia Motta?
Há dias, encontrei uma antiga colega de escola da época do Ensino Fundamental. Foi ela que me reconheceu e disse: você não mudou nada! Então o que pensamos sobre nós mesmos é também mediado pelo que pensam de nós.
De minha parte, posso dizer que Katia Motta é uma docente aposentada do Colégio Pedro II, formada em Letras, com Mestrado e Doutorado na área. Sou mãe de dois filhos e vivo cercada também de gatos, entre eles o Sr. Proudhon.
2) Que caminhos te levaram ao campo revolucionário?
Todos os caminhos que trilhei na vida: nascer mulher, pobre, periférica, sem atrativos físicos, consciente das durezas do mundo, idealista. Desde pequena, a injustiça, o abandono, o sofrimento humano, gerado pela desigualdade, sempre forjaram em mim uma alma inconformada, sonhando com um mundo melhor, com mais liberdade.
3) Desde quando o sindicalismo?
A luta sindical surge para mim, primeiro, acompanhando o movimento grevista dos Correios em 1984 no qual meu ex-companheiro tomou parte, tendo sido preso por fazer piquete. Mais tarde, em 1993, já formada docente de Língua Portuguesa, a organização através do sindicato (Sepe) foi uma aprendizagem coletiva em um Ginásio Público no Parque União, Complexo da Maré. Em 1995, recém-empossada no Colégio Pedro II, o sindicato se mostrou para mim como o espaço mais próximo à vivência anterior já que a estrutura do tradicional colégio me pareceu, a princípio, um espaço muito menos aberto à discussão plural e um pouco distante do meu mundo proletário. Mas aí vieram os filhos, o fechamento do Mestrado e participação no Sindicato ficou em segundo plano, porque as dificuldades da militância para mulheres com filhos pequenos eram muito grandes (e ainda são) naquela época. Em 2003, retomei uma maior proximidade com o sindicalismo, tendo participado de uma gestão da Direção do Sindscope, experiência que repeti em 2016. Mas desde então minha participação nos movimentos classistas tem sido ininterruptas, mesmo agora aposentada.
4) O que acha relevante registrar sobre a sua experiência sindical e de luta social, ainda antes do anarquismo?
As dificuldades enfrentadas para militar em um espaço tradicionalmente masculino. Além das restrições de tempo, pois quando se é mulher com filhos menores não se tem a mesma disponibilidade para reuniões extensas e noturnas. A participação em atividades que demandem viagens, por exemplo, é bem mais restrita para nós. Na época, eu ainda não tinha muita consciência da necessidade de organização das mulheres nesses espaços para romper barreiras e tentar criar um ambiente mais favorável a nossa participação. Muitas situações que vivi naquela época não seriam hoje suportadas por mim de forma silente em “nome do movimento”.
5) Como você se descobriu libertária?
Em 2005, tive contato com as ideias libertárias por meio do grande companheiro Alexandre Samis, que ingressou no quadro do Colégio Pedro II, em meio a uma grande greve. À época, eu experimentava certa desilusão política com os caminhos que tomava o governo do PT e procurava me reorganizar frente à constatação de que a democracia representativa era um engodo.
Na verdade, eu sempre me senti uma libertária, só não sabia que existia uma doutrina política, filosófica que me desse lastro para estruturar minha pulsão de liberdade, antiautoritarismo, meu senso de justiça e solidariedade. Assim, os escritos de autores anarquistas que me foram chegando me mostraram que era bobagem esperar mudança apenas trocando as moscas que circundam o fétido Estado e que é possível se organizar de forma autônoma, sem coerção de um poder instituído.
6) E sobre o feminismo e a luta social?
Não há como separar Estado e patriarcado. Eles são faces inseparáveis desse sistema contra o qual lutamos. Vejo com muita alegria que as questões de gênero têm muito mais espaço atualmente do que tinham quando eu era mais jovem e esse crescimento tem impulsionado importantes mudanças. Mas ainda é preciso avançar bastante, mesmo nos meios libertários ou nos chamados campos de “esquerda”. Não é possível pensar em revolução quando ainda vemos mulheres sendo agredidas por seus companheiros ou silenciadas nos espaços de militância. Enquanto atitudes machistas e misóginas seguirem sendo contemporizadas ou vistas como não desabonadoras, não conseguiremos avançar nessa pauta.
7) Fale um pouco sobre a questão animal.
Esse é outro braço do patriarcado, outra face cruel da exploração pelo capital sobre a qual os movimentos sociais, de modo geral, não se ocupam muito. Já me disseram certa vez que esta não é uma pauta “séria”. No entanto, na exploração animal está presente a mesma lógica que coisifica pessoas, que justifica a escravidão humana, por exemplo. Hoje, em meio a uma pandemia com alta mortalidade, é preciso que tenhamos consciência de que o modo como nós nos relacionamos com os animais está no cerne da questão. O especismo devia ser tratado como uma característica desabonadora que precisamos combater.
8) E as suas posições éticas, elas certamente se conectam com as políticas, não é assim? Você poderia nos falar dessas conexões?
Eu costumo pensar nas minhas escolhas éticas como um conjunto de princípios inegociáveis, seja quais forem as circunstâncias. Por isso, não me é possível pensar a atuação política sem essa referência. Isso muitas vezes pode ser incômodo no trato com a coletividade, porque em muitos momentos posso desagradar a alguns. Entretanto, não conseguiria desagradar a mim mesma, passando por cima dos meus princípios.
9) É possível ser educadora sem o compromisso com a ruptura social?
Para mim não, mas entendo que isso também depende da concepção que se tenha de Educação. Em uma Educação voltada para o desenvolvimento pleno do indivíduo, para o exercício da liberdade, não como um projeto individual, fica muito mais explícita a consciência de que o modelo de sociedade nos moldes atuais é entrave. Romper, portanto, com essas amarras passa a ser parte da pedagogia de quem entende a liberdade no sentido bakuniniano.
10) Formule aqui uma questão ou simplesmente escreva alguns parágrafos com temática livre.
Recentemente, em um evento a que não compareci, um militante do qual desconheço até hoje a identidade, ao tentar desqualificar o anarquismo, se referiu a mim como um exemplo de “anarquista que nada faz”. O fato de que, talvez, nunca tenha a oportunidade de expor meu lado na questão me incomoda, menos pelo ataque pessoal do que pela atitude covarde e machista do meu detrator.
Por outro lado, refletindo sobre a questão, foi possível depreender, na crítica, uma visão bastante equivocada do que eu considero ser o papel do militante político no tecido social. Não preciso nem quero proclamar aquilo que tenho feito no intuito de construir a luta. Como diz meu amigo Samis, não estou aqui para construir reputação, mas para construir movimentos de resistência. Se parece aos desavisados que nada faço, é sinal de que estou sendo fiel ao que acredito.